Entrevista Jornal O Estado RJ (Realengo)


A primeira pergunta que me dirigem é: quais fatores levam uma pessoa a fazer isso? Mas essa pergunta está errada. 

O que explica tal ato bárbaro não são os fatores. São as ausências de fatores: fatores de amor, de compaixão, de empatia, de capacidade de amar o próximo e fatores de humanidade. Talvez a ausência desses valores afetivos sejam fatores faltantes que explicam tamanho ato bárbaro.


Esta é a base da Entrevista concedida ao Jornal O Estado RJ

Os traumas nas crianças

Os possíveis traumas que essas crianças e até mesmo adultos podem ter após essa tragédia são muitos. Mas dentro de uma mesma tipologia específica. Antes de falar deles, é importante ressaltar que o trauma é apenas a reação psicológica de uma dada personalidade diante de um evento altamente estressante no organismo. Tão alta que não consegue ser significada pelo ego, pois era inesperada e até o presente momento impossível de acontecer.

Mas precisamos fazer uma correção conceitual. O fato é que é o trauma, os sintomas psicológicos posteriores são a marca deixada pelo trauma na psique de uma pessoa. Esses sintomas psicológicos são uma reação psíquica à memória do evento. Essa memória do evento volta e se repete na mente humana de maneira inconsciente a fim de ser elaborada, pode criar uma atitude exageradamente cautelosa e desencadear os transtornos conhecidos, como fobia social, transtorno do estresse pós-traumático, depressão e outros sintomas psicofisiológicos como ansiedade, insônia; dificuldade de concentração e posterior dificuldade de aprendizagem, estupor, agressividade, fobias diversas, dentre outras.

Numa criança, os efeitos do trauma podem ser mais devastadores do que num adulto. Justamente porque a criança ainda tem um cabedal muito diminuído de significar o mundo ao seu redor. Tudo o que é significado para ela vem do adulto. É pelo adulto que a criança se insere no mundo, isso em termos psíquicos. A criança tem um sentimento elevado de desproteção. Vide os pequeninos que são esquecidos pela mãe no supermercado o quanto eles choram. Logo, o evento traumático encontra essa personalidade ainda imatura, digamos assim. E ali se manifesta com maior vastidão de efeitos possíveis. O acompanhamento psicológico para crianças é obrigatório, por mais que ela se apresente ‘normal’. Não se pode confiar na aparente normalidade para se conferir um diagnostico de bem ou mal-estar. Justamente porque a paralisia, ou na linguagem popular, a ‘ficha não caiu’ é típico de trauma como esse.

Para uma criança, esse evento de Realengo tem altos poderes destrutivos porque encontra reunidos vários elementos agravantes: ter acontecido numa escola (lugar de aprendizado e aparentemente seguro), ter envolvido amigos próximos (o lugar do afeto e da relação social. Além do estresse do trauma, temos o luto), ter sido uma chacina (a sensação de fragilidade é aumentada, junto ao cenário aterrorizador de correria, tiros, sangue, gente correndo e desesperada) e por ter havido contato com sangue e gente morta (elementos prováveis de permanecer em sonhos). Esses vários elementos agravantes têm a conseqüência de estender os efeitos do trauma no tempo e na tipologia manifestada.

Os âmbitos em que podem aparecer a sintomatologia dos traumas é sempre o cognitivo, o social e o emocional. No cognitivo, dificuldades de concentração e curso do pensamento focado no evento traumático, por exemplo. No âmbito afetivo, a vítima pode ser acometida por desmotivação e falta de vontade de realizar algumas tarefas básicas e socialmente, a interação social pode ficar prejudicada por fobias ou até mesmo por fobia especifica relacionada a pessoas do mesmo sexo do agressor, por exemplo.

Entretanto, tudo isso é uma variabilidade de expressão psicológica possível. Justamente porque o que vai determinar qual tipo de sintomatologia apresentada é a equação personalidade (modo de encarar a vida, grau d e desenvolvimento emocional e cognitivo, histórico familiar, etc.) + trauma (tempo, profundidade, tipo, grau de exposição e de perigo) + o manejo no pós-trauma (se houve terapia, se houve suporte familiar ou grupal, quais defesas psicológicas existem, tempo passado, etc.).

É a interação entre esse três fatores que vai determinar a sintomatologia especifica daquela vitima.  Isso pode ser visualizado por exemplo nas diversas reações das vitimas sobreviventes da escola Tasso de Oliveira: alguns querem voltar à escola, outros já querem se livrar dela pra ontem.

É imprescindível ressaltar que a decisão dessas crianças deve ser respeitada. Se quiserem sair, que haja liberdade para isso, porque o suporte emocional de cada uma é que vai determinar qual a reatividade delas ao momento após o evento.

O tratamento psicológico de todos os envolvidos é importantíssimo. Um psicólogo deve estar de plantão mesmo depois de passado meses do evento para que possa detectar eventuais sintomas cognitivos. Isso se explica porque é ao longo do tempo que o ego lida com o trauma e a sua energia psíquica é dissipada da memória.

A reação ao trauma, ou os transtornos psicológicos advindos do trauma, são um sinal. Sinal que expressam medo e pavor extremos, profunda tristeza, paralisia integral relacionada à introspecção advinda da concentração desviada para a memória do fato e das vítimas, 

Os adultos costumam ter, pela mentalidade corrente na sociedade, uma espécie de defesa psicológica contra os efeitos dos traumas. Mostrar-se fraco não é bom. Não posso incomodar os outros, pensam. Estou bem, dizem. Isso é prejudicial porque os faz recalcar um medo. Todos somos frágeis e temos limites. Precisamos tolerar isso e aprender a lidar com isso. Logo, a os efeitos do trauma tendem a ser misturados com os da defesa psicológica deles. Como negação e sobrevalorização do evento, outras defesas incluem fumar e beber em excesso. Ver filmes em excesso, sair e tentar se desconcentrar etc. Essas defesas do adulto costumam produzir um comportamento exagerado e superficial na tentativa de se livrar da fraqueza que o evento o proporcionou.

 
O tratamento desses traumas

Em primeiro lugar, todos precisam aceitar a condição de traumatizados e vítimas. Em segundo cercar-se de apoios psicoterapêuticos para elaborar o trauma. Esses apoios não são exclusivamente os psicoterapêuticos clínicos, mas sim o suporte grupal, as discussões na escola, o suporte e a presença dos pais, os trabalhos escolares, tudo.

Devemos ressaltar que nesse processo de elaboração do evento traumático cada sujeito deve ser respeitado em seu grau de disposição para discutir o acontecido. Não podemos produzir outra violência para tentar tratar uma anterior. Contudo, essa resistência em discutir o acontecido deve ser observada de perto e acompanhada por profissionais psis para que chequem se isso não é um fechamento excessivo que trará mais problemas psicossociais no futuro. 

Os pais das vitimas podem, além de se inserir em tratamentos psicológicos, formarem uma associação de apoio mútuo de caráter temporário para darem-se o suporte afetivo e de recursos necessários para passarem por esse momento difícil.

Essa temática pode estar em sala de aula também. Contudo, é preciso um momento para que o próprio tempo dissolva toda a carga afetiva envolvida nesse triste episódio. Para que isso aconteça, a direção da escola assessorada por profissionais psis haverão de julgar o momento de cessar as discussões grupais e passar para um segundo estagio: o foco individual naqueles que ainda precisam de mais tempo para elaborar o ocorrido.


O papel da escola nesse momento

Creio que o bom senso deve reger as aulas. Haverá momento de desconcentração, de choro, de silencio. Todos esses tempos devem e creio que serão respeitados pelo corpo docente e direção da escola. Os processos de avaliação e de aplicação de conteúdos escolares poderiam ser repensados e uma avaliação pontual poderia dar lugar a uma avaliação estendida e diversificada em seus métodos. Precisamos saber que nesse momento a capacidade cognitiva pode estar em déficit em alguns do corpo discente.

O trabalho do corpo docente deve estar assessorado por profissionais psicólogos e psiquiatras que haverão de realizar plantões decrescentes ao longo do tempo na escola. À disposição dos alunos, professores e todos os atores educativos. Tanto de forma individual quanto grupal.

É enormemente necessário que haja sintonia entre esses profissionais e os atores educativos (professores, alunos e diretores). Eles precisam de um canal de comunicação aberto para ajustarem a carga e a freqüência dos debates sobre o trauma. Conversar sobre o ocorrido é necessário. Para esquecer é preciso lembrar, mas para lembrar com eficácia, esse conversar deve ser decrescente respeitando a dificuldade de cada um. Deve-se ter o senso adequado para não massacrarmos a memória das vitimas para além do necessário.


O que era o Wellington?

O modus operandi de um assassino denuncia indiretamente a sua psicodinâmica, suas fantasias, sua estrutura de personalidade e sua historia. No caso de Wellington muitos quadros clínicos foram apresentados, mas uma coisa pode ser inquestionável: pelo modus operandi, desconsiderando caso de psicose, foi uma devolução de ódio.

Podemos considerá-lo um psicopata exclusivamente pela execução desse seu ato. Ele não era simplesmente um neurótico. Era mais do que isso. Contudo, para academicamente diagnosticá-lo assim deveríamos ter mais evidências suas, tanto as comportamentais quanto verbais, para nos assegurar de um diagnóstico com certeza.

Para entender a mente de um assassino, nós temos o hábito de perguntar ‘que fatores levam um indivíduo a cometer tal ato?’. Só que esta pergunta é incompleta. Por isso todas as respostas parecem deixar algo a desejar. Justamente por faltar a outra parte da pergunta necessária para entendermos o que leva uma pessoa a fazer isso.

A pergunta é ‘que fatores psicológicos estavam ausentes e que seriam necessários para impedi-lo de fazer isso?’. Aí, podemos listar: culpa impeditiva, empatia, reconhecimento do limite e da existência do outro, senso de realidade, esperança e até mesmo amor. Portanto, de uma certa forma, esses elementos psíquicos estão faltantes na mente de um assassino. Na gênese de sua personalidade eles não são fatores positivos e determinantes, mas fatores negativos por estarem ausentes.

Um assassino é um ser formado ao longo do tempo. Não podemos desconsiderar fatores sociais, econômicos, religiosos, escolares, mas o que determina é justamente o acaso. Acaso? Sim. O acaso de ter uma personalidade forjada com muito ódio e fatores psicológicos positivos ausentes.

Qualquer comportamento humano é sempre multideterminado e complexo. Isso porque vários fatores colaboram para um comportamento acontecer. Complexo porque precisamos ao longo do tempo de uma serie crônica de fatores positivos (rejeição, bullying, ódio, pais distantes e maus, etc.) somados ao longo do tempo com fatores negativos (ausência de pais com suporte emocional, valores sociais e éticos introjetados no ego, amor, esperança, etc.) e fatores de conveniência (como a religião extremista de assassinar em nome de um Deus). Qual desses é determinante, perguntam. Nenhum, porque a mente é complexa. Logo todos esses três tipos de fatores são determinantes e potencializadores um do outro.


Até que ponto o bullying influenciar uma pessoa a cometer um crime como esse?

Ate o ponto em que o bullying encontra uma personalidade desequilibrada, uma família que não sabe do que acontece e não intervém, até o ponto em que o bullying sai da escala do eventual e se torna crônico, ate o ponto em que há fatores de conveniência para realizar tal ato criminoso, até o ponto em que temos uma escola inoperante, até o ponto em que o bullying se torna uma injustiça e um acumulador de ódio. Ou seja, perceba que listei uma serie de eventos que somados podem desencadear um crime. O crime é o resultado de uma negligencia em algum lugar da sociedade. Negligencia porque houveram falhas na formação de uma personalidade. Tanto da escola, quanto dos familiares, quanto do estado. Agora de quem é a culpa? De nenhum e de todos ao mesmo tempo.

O que a escola precisa fazer é intensificar o debate sobre o bullying. O bullying acontece tanto em atos violentos quanto em palavras e olhares. O debate e a promoção da tolerância do diferente devem estar insertos na escola e engajar todos os atores educativos. Não podemos cair na culpabilização de quem deve educar: se a família ou a escola. Mas a escola tem um papel a cumprir e o Estado precisa remunerar bem esses profissionais de ouro para que esse papel seja bem executado.  Os professores estão esquecidos. Há toda uma luta política envolvida. Você sabe qual é o salário de um professor do Estado do RJ? 


Entrevista Efetuada por Andrea França
Jornal O Estado do RJ


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